Autogénese

Autogénese

Nascitura estava sem faca nos dentes
Cómoda e impura de não ter vontade
De bater nas gentes

Nasce-se em setúbal nasce-se em pequim
Eu sou dos açores (relativamente
Naquilo que tenho de basalto e flores)
Mas não é assim: A gente só nasce
Quando somos nós que temos as dores

Pragas e castigos foram-me gerando
Por trás dos postigos e um fórceps de raiva
Me arrancou toda em sangue de mim

Nascitura estava sorria e jantava
E um beijo me deste tu Pedro ou Silvestre
Turvo namorado do verão ou de outono
Hibernal afecto casca azul do sono
Sem unhas do feto

Eu nasci das balas eu cresci das setas
Que em prendas de sala me foram jogando
Os mulheres poetas eu nasci dos seios
Dores que me cresceram pomos do ciúme
Dos que os não comeram

Nasci de me verem sempre de soslaio
De eu dizer em junho e eles em maio
De ser como eles às vezes por fora
Mas nunca por dentro perfil de uma estátua
Que não sou de frente

Nascitura estava e mais que imperfeita
De ser sorte ou dado que qualquer mão deita

Eu nasci de haver os bairros da lata
Do dedo que escapa dos sapatos rotos
Da fome que mata o que quer nascer
E que o sábio guarda em frascos de abortos

Eu nasci de ver cheirar e ouvir
Dum odor a mortos (judeus enlatados
Para caberem mais mas desinfectados)
Pelas chaminés nazis a sair
De te ver passar de me despedir
De teus olhos tristes como se existisses
Nascitura estava tom de rosa pulcra
Eu me declinava vésper em latim:
Impura de todos gostarem de mim

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