A Fábula 174
O reino apronta suas oportunidades
A selva permanente da disputa se refez
As vielas magras e tortas pariram mais um lindo dos seus
Dos seus...
Dos seus...
Entre tanta promiscuidade
A vida cínica traça o que é seu
A linha rasa da necessidade
A pedagogia da miséria lhe aparta a alma e deus
E deus...
Ele não é melhor que os números
Sua mãe perde a cabeça no interior
Em São Gonçalo o corte é mais profundo
Caprichosa a faca lhe retalha alma sem cor
Sem cor, sem cor, sem cor...
Escorada na laje ensanguentada apodrecem suas migalhas infantis
São Gonçalo a cicatriz de todo o mundo
Ele parte por revanche
E foi, e foi, e foi...
O reino das oportunidades mostra o cinismo
A sujeira dos bueiros, o pó dos canteiros e o calabouço
Já alimenta mais que o banquete azedo de natal dos cristãos
E já descrente do teor nutritivo do sopão o ódio se fez cúmplice e irmão
Na banca de jornal ele dormia pra sobreviver
O chafariz decorava o alívio empacotado matinal
O holocausto em frente à igreja
A missa vazia por indiferença e entre tanta liberdade ele foi sofrer
A contragosto da engenharia da limpeza
Ele ainda respirava com vigor
A sua resistência irrita os pedestres
Todos gritavam: mata o filha da puta que restou
Que restou, que restou, que restou...
Entre o fogo cruzado a cruz lhe guarda
O estilhaço mais certeiro com amor.
A angústia ferve o sangue ralo e o torna celebridade do medo
E o medo, e o medo, e o medo...
O reino das oportunidades mostra o cinismo
A sujeira dos bueiros, o pó dos canteiros e o calabouço
Já alimenta mais que o banquete azedo de natal dos cristãos
E já descrente do teor nutritivo do sopão o ódio se fez cúmplice e irmão
Ele é preto e os homens com a caveira estampada no peito
Cobram o luto com sua pele-penitência
Uma estrela por cada morte
Ele resiste, incomoda é o espelho da sorte
Em gritos a massa lhe retribui a sentença
Babando exigem o desfecho que a grande mídia espera
Um assassinato como perdão
O assassino exige o olho da sociedade
E a sociedade oferece os dentes podres de alarme
Os fuzis o cumprimentam no ponto de ônibus
Ele acena solitário já sem o medo de ser o próximo (ele é o próximo!)
A passagem é barata demais
Os carniceiros avançam sobre ele
E no calor da vontade predadora esnobam balas no rosto da menina por engano
O equívoco é um erro necessário
O camburão é o seu último teto
E desacostumado ele é sufocado
A hipocrisia dá lugar à selvageria
E o orgulho civilizatório ocidental é só um detalhe casual
O Estado de direito enxugou seus dentes
E a liberdade se fez
O mundo, lápide 174
A oportunidade que deus lhe deu,
Que deus lhe deu...
O mundo, afinal o fez livre...
Livre do fardo de viver
Livre do fardo de viver